terça-feira, 16 de novembro de 2010

Reflexões de um neo-assaltado beijando o asfalto)

( O texto foi escrito pelo meu amigo Jota Ninos, em novembro de 2006, quando estávamos no 1º semestre da faculdade, super bem escrito, vale muito a pena ler de novo, até porque...É super engraçado e mostrou toda a "coragem" do Jota e do Joiciano. rsr)

Reflexões de um neo-assaltado beijando o asfalto ( Por Jota Ninos)

Sempre me gabei de nunca ter sido assaltado em toda a minha vida, fosse no Brasil ou no exterior por onde andei. Na verdade sentia uma ponta de inveja dos colegas que me relatavam os assaltos sofridos e tentava esbanjar um ar de superioridade diante de minha “virgindade” no assunto. Isso acabou me fazendo sentir até discriminado em certas rodas e me levou a imaginar o que pensavam de mim os que já haviam passado por essa experiência (“você não é digno de conviver em nosso meio, seu... “desassaltado”!).
Por conta disso, vivia imaginando qual seria minha atitude diante de um assalto à mão armada. Daria uma de galã hollywoodiano e sairia dando sopapos no “meliante”? Dialogaria com ele e o convenceria a deixar sua vida marginal? Ou apenas me borraria de medo e suplicaria pela minha vida, tentando convencê-lo de que quatro bocas me esperavam famintas em casa? Toda minha dúvida existencial sobre o tema caiu por terra, literalmente, quando fui obrigado a deitar no chão por um assaltante armado na noite da última segunda-feira (06/11/06).
Como todas as noites, sai da faculdade onde estudo e me dirigi ao cyber-café (aliás, porque se chamam cyber-cafés se nem café têm para vender?) mais próximo para atualizar um de meus blogs na internet. Nesta noite, tinha a parceria de um dos colegas de turma, Joyciano Marinho, que como eu era também neófito na condição de assaltado. Após visitarmos o blog da nossa turma de jornalismo, descemos pela mesma rua escura que tantas vezes passei, em direção à minha casa. O papo acadêmico fluía entre abobrinhas da sala de aula e a divagação sobre os problemas do mundo. Eis que surge em nossa frente a realidade nua e crua, da qual só conhecíamos através de relatos ou de filmes.
O assaltante, um garoto de pouco mais de 20 anos, poderia ser meu filho ou irmão de Joyciano. Do alto de sua figura magérrima, o rompante de senhor de nossas vidas com uma arma na mão: “Mermão, vamu deitando no chão e passando a carteira se não passo bala!”. Estáticos, fomos aos poucos entendendo que acabávamos de entrar nas estatísticas de vítimas de assalto. Pensei comigo: vibro por não ser mais “diferente” dos meus colegas assaltados e abraço o ladrão por me proporcionar este momento ímpar ou simplesmente desmaio? Nem me lembrava das opções anteriores. Minhas pernas bambas não permitiam esboçar qualquer reação hollywoodiana. Mal consegui envergá-las para me ajoelhar. Mãos na cabeça, prostramo-nos no frio asfalto da rua deserta e mal iluminada. Literalmente, beijamos o asfalto. A sensação era narcotizante. As palavras do garoto, soltando impropérios soavam longe. Me lembrei de um dos únicos porres que tomei na vida quando adolescente: enquanto levava um pito, minha cabeça parecia os carrilhões de Nazaré no dia do Círio em Belém.
“Tira a camisa, mermão, mas num olha pra mim”, vociferava nosso algoz. Arrancamos as camisas pólo suadas e sujas de terra e jogamos em sua direção. “Camisa é melhor no mato”, filosofa nosso pivete ensandecido, antes de arremessá-las em direção ao muro que margeia a calçada maltratada, tomada por arbustos. “Cês também, pro mato e sem olhar pra mim”, sentencia nosso feitor da meia-noite. “Num sou daqui e tô fazendo uma “limpa” na área, mermão!”, explica ele.
Sentimo-nos io-iôs nas mãos do assaltante. Continuamos calmos, apesar de, passado o susto inicial, já alimentarmos um certo ódio e uma vontade louca de atacá-lo. Mas entre nós dois e ele há uma arma apontada, reinando soberana e doida para fumegar ao menor vacilo. Prostrados, agora no mato, ouvimos o garoto sofregamente buscando dinheiro nos porta-cédulas. Encontra dois míseros reais que eu ainda carregava no final da noite e os surrupia. De repente, encontra algo que lhe chama a atenção: um porta-documentos com brasão da República, usado geralmente por funcionários públicos da área de segurança. A cor vermelha do couro parece acender no assaltante o ódio de Aris, o Deus da Guerra na mitologia grega, ao gritar de forma sarcástica e meio tatibitate: “O que temos aqui? Um PM! Já “puxei” cadeia e tenho raiva de PM. Acho que hoje vou matar PM”. Pela primeira vez, sentindo o perigo rondando minha cabeça, falo com firmeza em direção ao assaltante dizendo que não sou da PM e sim funcionário da Justiça. Caio em mim, ao pensar que o dito cujo não deveria diferenciar um do outro. “Cala a boca! Eu atiro!”, grita ele.
Me calo com as mãos na cabeça. O sangue parece querer explodir minha cabeça antes da bala que acho estar a caminho. Tento pensar nos filhos que tenho, no livro que não escrevi e na árvore que ainda não plantei. Talvez seja tarde para todos os arrependimentos. Quão pequeno sou naquele momento! Minha vida pouco vale diante da sanha de um menino criado nas ruas, adotado por traficantes, marginal de uma sociedade hipócrita. De nada me adianta filosofar. A morte parece certa.
“Bora, mermão, pega as bolsa e joga os celular, rápido!” O assaltante me desperta, clemente, dando-me mais uma chance de viver minha miserável vida. Basta eu me livrar do pequeno aparelho que trago na bolsa e que para ele pode representar um alívio em forma de drogas a serem trocadas em qualquer boca-de-fumo das redondezas. Rapidamente tiro o celular e jogo, sem levantar a cabeça. Meu colega, renitente, acaba cedendo e também joga o seu. Não vejo o semblante de Joyciano mas imagino seu rosto, sempre compenetrado em sala de aula lendo Aristóteles ou Nietzche, fazendo um esforço para entender tudo aquilo. Antes de sermos abordados, me falava de projetos ambientais sustentáveis para melhor a vida dos nativos da região e evitar injustiças sociais.
Foram-se os celulares, ficaram os ouvidos e bocas. Um último recado de nosso verdugo ao tucupi: “Tô saindo, mas vou ficar de olho em vocês. Se levantarem a cabeça, ficam sem ela”. Poesia marginal?
Os minutos em que ficamos parados naquele mato, sem camisa e sem celulares, pareciam eternos. Nenhum de nós tinha coragem de olhar para cima. Talvez quiséssemos dormir ali mesmo e acordar achando que tudo não passou de um pesadelo. Levantamos e caminhamos como dois perdidos numa noite suja, rumo à Seccional de Polícia a um quilometro dali. Tentamos entender cada um dos segundos de agonia e o que poderíamos ter feito. Cada um de nós com um sentimento de ódio mesclado ao alívio de sentir a cabeça no lugar. Concluímos que não fazer nada, fez a diferença entre a vida e a morte.
Minha relação com o submundo do crime, até hoje, sempre foi de caráter profissional ou voluntário, seja como repórter policial no início de minha carreira jornalística, seja como escrivão judicial atualmente, acumulando com a função social de membro do Conselho da Comunidade. Nunca cara-à-cara, na condição de vítima. Antes visitava presos nas delegacias. Hoje percorro corredores da penitenciária de Cucurunã conversando com caras amontoados em celas fétidas que vêem em mim sua única esperança de contato com o mundo lá fora. Talvez esse menino já tenha estado numa dessas celas. Se não esteve, quem sabe um dia estará, e eu o ouvirei, tirando dúvidas sobre seu processo.
A noite continua. Outros assaltos ainda acontecerão. Gente há de morrer e sobreviver. Essa é a lei da selva capitalista. A nós, resta acreditar que nossa hora ainda não chegou...


O texto original você encontra aqui: http://jotaninos.blogspot.com/2006/11/reflexes-de-um-neo-assaltado-beijando.html

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